Joanna Boff Cambusano

A infância simples e a vida de intenso trabalho se refletem na expressão séria da maior parte das fotografias em que ela aparece. Parteira de mão cheia, cozinheira da qual os pratos e até mesmo o café exalavam o cheiro por toda a vizinhança, amiga de todos e dedicada matriarca de uma das mais tradicionais famílias de Jacareí, Joanna Boff nasceu em um domingo de primavera, no dia 26 de setembro de 1897, na casa da família no bairro do Cajuru, em Itu (SP). Era filha do italiano Giovanni Boff, lavrador, então com 41 anos, e da austríaca Theodora Tretel, que na ocasião tinha 32 anos.
Antes de falar sobre a Joanna, é preciso contar que, se por um lado há registros da chegada de Giovanni Boff no Brasil, por outro faltam documentos relativos à entrada de Theodora no país, a despeito dos traços físicos que podem denotar a origem, tais como olhos e pele claros, características herdadas por Joanna.
Na tese As relações entre a Áustria e o Brasil – 1815-1889, o autor Ezekiel Stanley Ramirez (1909-1993) menciona que pouquíssimos imigrantes da Áustria chegaram ao Brasil antes de 1800 e, em geral, a imigração de europeus era restrita a portugueses (RAMIREZ, Ezekiel Stanley. As relações entre a Áustria e o Brasil – 1815-1889. Tradução de Américo Jacobina Lacombe. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968. 260 p.).
“Estatísticas mostram que, entre 1820 e 1920, 2.777.762 italianos, 2.116.108 portugueses, 1.021.028 espanhóis e 262.882 alemães emigraram para o Brasil. É de notar-se o grande número de italianos, mas alguns deles podem ter sido súditos da Áustria, como também muitos alemães”, conta o pesquisador.
Em sua pesquisa, Ramirez afirma que a emigração austríaca para o Brasil começou depois de 1850. “Entre 1850 e 1868, 57.726 pessoas emigraram através de serviços austro-húngaros. Da Boêmia partiram 43.645, outros imigrantes foram da região costeira e do Tirol Meridional”, aponta.
Além de ter demorado para iniciar, a entrada de austríacos no Brasil não perdurou muito tempo porque foi reconhecida pelo governo de lá a precária condição de vida oferecida aqui. “A emigração da Áustria para o Brasil foi insignificante durante esse período porque os Habsburgos [dinastia que reinava o país] estavam convencidos de que a população era a verdadeira riqueza de uma nação, e o ideal era aumentá-la em vez de diminui-la, a fim de reforçar e fortificar a posição de seu império dentro do conceito das grandes potências europeias”, escreveu Ramirez
De qualquer forma, uma vez estabelecida no Brasil, Theodora se casou com Giovanni e permaneceu com ele até sua morte, em 1939. Na certidão de óbito, consta a Áustria como naturalidade, o único registro que se tem a respeito de sua origem.
Giovanni e Theodora tiveram nove filhos: Maria, Angelina, Regina, Antonieta, José, Joaquim, Pedro, Paulo e Joanna – a única a se mudar das redondezas de Itu e Sorocaba, onde todos os demais membros da família se concentraram.

A infância simples, na roça, era de trabalho dentro de casa e no campo. Escola não era prioridade para os filhos dos colonos. Muitas vezes, todos tinham que trabalhar na roça na tentativa de recuperar o investimento feito para a vinda ao Brasil.
“Mamãe trabalhava e ajudava muito na fazenda. Pegava uma quadra para capinar, e não tinha homem que pegava ela, nem mesmo os irmãos. Mas ela era mais de trabalhar na cozinha, matava porco e colocava na lata com banha.
Ela e as irmãs lavavam toda a roupa e arrumavam a casa. Mamãe tinha muitas lembranças dos pais dela e muitas vezes contava a história deles.
Quando venderam a fazenda dos pais dela, em Itu, mandaram 15 mil réis para ela. Ela nunca reclamou, mas não foi consultar nem soube por quanto a fazenda fora vendida. Ela não tinha apego a essas coisas”, conta o filho Mir.
“Ela contava que morava na roça e tinha bastantes irmãos. Ela trabalhava na roça, e os irmãos faziam ela de boba: quando chegava em casa, ninguém tinha deixado comida para ela”, recorda-se a nora Bene.
Aos 21 anos, Joanna entrou na igreja e se casou com João Baptista Cambusano, outro descendente de imigrantes que saíra da roça após a morte dos pais a fim de aprender com padres a técnica da encadernação. Conheceram-se em Itu, e o matrimônio foi celebrado no dia 23 de junho de 1919, uma segunda-feira, na Igreja Matriz, sob a benção do vigário Elisiário Camargo Bastos.
No ano seguinte ao casamento nasceu o filho Roberto Cambusano, o único dos filhos que seria natural de Itu. Quando ele completou um ano de idade, a família se mudou para Jacareí, onde João iria trabalhar na Escola Profissional como encadernador. Foram dias difíceis para eles, e Joanna, apesar do vigor, chorava cada vez que apertava a saudade dos familiares.
No final de 1921, em 15 de novembro, nasceu Adelina (Nina), e os filhos se sucederam na seguinte ordem: João Filho, o Du, em 1929; Hélio em 1931; Dionyzio, o Nyzio, em 1933; e os gêmeos Walfredo (Fredo) e Waldemir (Mir), em 1936. Além deles, o casal teve dois filhos: Jandira, que morreu ainda muito pequena, apesar de Theodora ter empreendido esforços em cuidar da bebê, levando-a para receber os cuidados em Itu (onde supõe-se que o corpo esteja sepultado); e Arlindo, que morreu com poucos anos de vida, por motivos desconhecidos pelos irmãos. Ironicamente, a vida reservou para a família Cambusano uma surpresa: um dos melhores amigos eram um casal e se chamavam Jandira e Arlindo!

A primeira residência da família foi no final da rua Lúcio Malta, no entorno de onde atualmente existe o Parque dos Eucaliptos, e por ali João fundou, em 1926, a empresa de encadernação e fotografia da família. Apesar de, ao longo dos anos, todos estarem envolvidos com os negócios, não foi sempre assim: antes dos 17 anos Roberto já trabalhava em fábrica, e Joanna atravessava o rio Paraíba, a canoa, para trabalhar no cultivo do arroz no entorno do atual Jardim Flórida, deixando João a sós com os negócios.
“Ela fazia tudo, cuidava da casa, lavava louça. Aliás, lavar louça, nós, depois de crescidos, que lavávamos, eu, o Hélio e o Du. O Fredo e o Mir eram pequenos. Um dia um lavava e o outro enxugava.
Antes, quando a gente não tinha nascido – somente o Roberto com a Nina – eles moravam na rua Lúcio Malta, no final dela, quando o final dela era perto da loja Geraldo Abrão. A casa era alugada do pai do Geraldo Abrão, o Zé Abrão. Casinha simples, de três cômodos.
Minha mãe levantava às quatro, cinco horas da madrugada e ia a pé onde era a rua do Matadouro, na beira do Paraíba. A rua Vicente Scherma ia dar lá no Matadouro. Ela passava por ali, pegava uma canoinha e atravessava o Paraíba, que era mais largo. Ela chegava lá na várzea, onde hoje é o loteamento do Flórida, e ia carpir arroz. Todo dia, de domingo a domingo. Das cinco, seis da manhã até seis da tarde. Ela vinha fazer almoço para nós, voltava e ficava até seis da tarde. Como mulher, ela trabalhou muito mais que muito homem por aí.
Ela fazia serviço de roça, sabe por quê? Porque o pai dela tinha sítio em Itu, e lá ela carpia. Sítio pequeno, ele plantava para comer, tinha uma vaquinha. A gente não chegou a conhecer porque era tudo pequeno.
Quando veio para cá, ela não sabia ler nem escrever. Ela foi aprender com 60 e poucos anos sabe com quem? Com minha cunhada, a Cida. Ela era professora aposentada e ia na casa de minha mãe ensinar. Meu pai assinava o jornal O Dia na época, e ela lia o jornal todinho. Mas até então ela era analfabeta”, contou Nysio.

Conforme os negócios iam atingindo maturidade, a família teve oportunidade de se mudar para a rua Pompílio Mercadante no 68, na época chamada rua do Carmo, mas ainda assim eram condições simples de habitação.
A casa era de chão batido. A porta da sala não tinha tranca e era escorada, durante a noite, por uma cadeira. O quintal era o território favorito de Joanna, onde ela cultivava hortaliças e um pomar, cujos vegetais tanto abasteciam a família quanto serviam de fonte de renda. Joanna colhia frutas, legumes e hortaliças e deixava para os gêmeos a tarefa de sair para as ruas ainda pacatas de Jacareí e vender esses produtos.
“Em casa, a porta ficava aberta, qualquer um entrava. Nós íamos almoçar, tinha a cozinha, o fogão de lenha num canto, a geladeira, uma janela e a mesa para comer. A porta ficava aberta, o dia inteiro dava gente da roça ali, entrando. A gente ia almoçar, entrava gente, ficava na janela e ela oferecia almoço. Quando não aceitavam, ficavam olhando a gente almoçar”, recordou Fredo.
Educava os filhos com mãos de ferro. Deixava-os brincar à vontade, mas, quando os chamava, tinha que ser na hora, senão lá vinha puxão de orelha ou umas palmadas. Ai se resmungasse! João, pelo contrário, muito quieto e introspectivo, deixava a responsabilidade da criação dos filhos para a mulher.
“Nós ficávamos, aquele monte de molecada, ali na rua João Américo, na esquina, brincando. Mamãe gritava lá do quintal: ‘Waldemir, Walfredo’, a gente ia embora porque já tinha a vara de marmelo pendurada na mão dela. Quer saber? Dez horas, na rua, de jeito nenhum! Dez horas a gente já estava dentro de casa e era dormir, não tinha nada de rua”, lembra Fredo.
Até mesmo depois de adultos, os meninos apanhavam da mãe, quando ela descobria que eles estavam apostando dinheiro no baralho – jogo que eles cultivaram ao longo de toda a vida.
“Tinha um clube de jogatina na praça Raul Chaves, onde o Mir jogava todo o dinheiro do Estúdio. A vó Joanna brigou muito com eles por causa disso”, contou a nora Marlene.
“Mesmo com 19 anos, os meninos tomavam tapa na orelha. Ela ficava com fio de ferro atrás da porta e, quando eles chegavam quietinhos para não acordá-la, ela já estava esperando”, complementa a nora Marly.
A roupa toda era lavada à mão, no tanque, e enchia varais e varais com camisas, calças, vestidos e peças íntimas de sete pessoas. Depois de recolher tudo, ainda passava com esmero.
No fogão a lenha tudo se transformava nas mãos de Joanna, mesmo que não houvesse muito. Ela era capaz de criar um ensopado com o pouco de batata e um pedaço de pão duro que tivesse ao alcance da mão.
Preparava o melhor nhoque possível para os almoços em família. Com paciência sovava a massa até "dar o ponto", enrolava e cortava os cubinhos (ou travesseirinhos, na imaginação das crianças), cozinhava e deixava tudo uma delícia! Da mesma forma era com os pães, cujo cheiro podia ser sentido a um quarteirão de distância.
“A gente passou por uma época de dificuldade, quando toda noite comíamos sopa, que mamãe chamava de minestrone, sopa de feijão, arroz e couve. Ou então, a gente comia sopa de macarrão”, lembrou Mir.
Após o casamento dos filhos, quando as noras estavam no repouso pós-parto, Joanna costumava tratá-las com uma reforçada sopa de galinha com legumes para que a recuperação ocorresse da melhor maneira possível.

Quem passasse em frente daquela casa e encontrasse Joanna com a vassoura, logo pela manhãzinha, varrendo a calçada, parava para conversar. Se reclamasse de alguma dor ou doença, Joanna tinha a receita ou erva para o chá.
Caso se comentasse a respeito de alguma criança com vermes, febre ou amarelão, Joanna preparava algum remédio que era “tiro e queda”: ela queimava chifre de boi no fogo, raspava o pó, fazia uma massa de mentruz com açúcar, colocava a raspa do chifre do boi e enrolava na barriga da criança. A receita era certeira para eliminar os vermes.
Longe da família e numa época em que não era tão comum ter telefone nas casas, Joanna tinha poucas oportunidades de estar com seus pais e irmãos, que moravam em Itu. Theodora, sua mãe, morreu em 31 de maio de 1939, e o pai Giovanni em 27 de agosto de 1941, ambos sob os cuidados dos filhos que moravam mais próximos.
Além desses acontecimentos, a década de 1940 continuou sendo dura para ela: em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, o filho Roberto embarcou com o 6° Regimento de Infantaria rumo à Itália, como combatente. Até o início de junho de 1945, o clima foi de apreensão cotidiana e algumas vezes de profunda tristeza, como quando chegou uma notícia, desmentida no dia seguinte, da morte do filho.
“Uma vez, saiu num jornal de São Paulo a lista de mortos da Guerra. Em Jacareí, estava o nome do Roberto e de outro. Minha mãe chorou muito. Mas em Jacareí só tinha morrido o João Américo, que morava na rua Liberdade, que passou a ter o nome dele. Eu acho que foi o jornal que corrigiu [a notícia da morte], não lembro. Mas isso foi coisa de uns dias, acho que no dia seguinte já ficamos sabendo que ele não tinha morrido. O corpo do João Américo foi achado uns meses depois, estava inteiro ainda, por causa do gelo”, diz Nyzio.
Roberto voltou da Itália e, finalmente, algumas coisas começaram a melhorar. Ele se casou em 1947 com Maria Aparecida Ribeiro, a Cida, e no ano seguinte Joanna viu nascer sua primeira neta, Roseny, que encheu a casa de alegria.
Logo depois aconteceu o casamento da filha Nina com Roberto Medeiros, o nascimento dos netos Zezinho (1953) e Beto (1954), o casamento do filho Hélio com Benedita Vitoriano, a Bene, e o nascimento do neto Helinho.

A década de 1950 trouxe a mudança para uma casa maior, ainda na rua Pompílio Mercadante, mas agora no número 137. Além disso, os filhos começaram a colecionar vitórias no futebol, levando o Esporte Clube Elvira ao título de campeão em 1956, e Joanna guardava um tempinho para ver os filhos em campo.
Apesar de todas essas alegrias, o final da década foi de tristeza profunda: João havia desenvolvido um câncer no pulmão, em decorrência de uma vida inteira como fumante, e começou a necessitar de cuidados médicos. Com poucos recursos, ele continuou a trabalhar até o fim da vida, o que aconteceu após o Natal de 1958, não sem antes deixar os negócios sob o cuidado dos filhos e esposa.
A viuvez aos 61 anos não esmaeceu Joanna. Filhos e netos passaram a ver nela a referência de família, a matriarca, responsável por reunir todos nos almoços de domingo ou nas festas de aniversário, que, normalmente, eram realizados em sua casa.
“A gente namorava, e desde aquela época tinha almoço de domingo naquela casa, com todo mundo. Eles tinham muitos amigos, tinha muito homem naquela casa, e todo domingo reunia todo mundo, parecia festa. Quando a gente, mulher, ia almoçar lá, tinha até vergonha”, conta Odette.
No ano seguinte à morte de João, o filho Fredo se casou com uma mulher que tinha o mesmo nome da mãe, Joana – escrito com um n. Em 1966, foi a vez de Mir se casar com Marly, mas, ao invés de a casa se esvaziar, o contrário aconteceu: em 1969 Du ficou viúvo de Nely, e ele se mudou, temporariamente, para a casa da mãe, levando consigo a governanta, Marilene, e os filhos menores – Amarildo, Cláudio, Fernanda e Cláudia.
Como o Estúdio havia sido construído onde seria a garagem da casa, era normal que Du ficasse por ali durante o dia. Vendo a situação do filho, Joanna advogou a favor de Marilene naquela união que seria notícia no Programa Silvio Santos dali a alguns anos: o patrão que se casou com a empregada.
Enquanto o Estúdio desenvolvia suas atividades fotografando as pessoas e a história de Jacareí, Joanna auxiliava em que podia: cortava as ampliações, fazia sala para os clientes, servia um café fresco ou arrumava os defuntos. Sim: numa época em que a fotografia não era tão comum como atualmente, muitas famílias levavam o falecido até o Estúdio para o último ou talvez único registro fotográfico que teriam, e Joanna ajudava a arrumar o corpo.

As habilidades de Joanna se mostravam nesses momentos de tristeza, mas também naqueles de alegria: ela foi responsável pelo parto de seus filhos, de alguns de seus netos e de muitas pessoas que moravam na vizinhança e conheciam seus dons de parteira.
“Ela só teve o Roberto com uma parteira. Os outros, ela teve sozinha. Ela mandava meu sogro pôr água para esquentar, ela mesma preparava a cama, tesoura, desinfetava e deixava tudo que ia precisar. Só pedia água para lavar a criança. Até mesmo quando nasceram os gêmeos: ela teve um, enrolou no cobertor, deixou ali do lado para nascer o outro. Ela contava isso! Nasceu o outro, ela enrolou, tomou banho, arrumou as crianças, botou para dormir, aí ela mandou chamar os vizinhos para contar que tinham nascido os gêmeos”, lembrou Odette Cambusano.

Ao longo da vida, Joanna acolhia a todos em sua casa como filhos, mesmo com todas as adversidades que a vida pudesse impor, fossem as dificuldades financeiras ou a falta de espaço, isso não importava: havia sempre espaço para alguém que necessitasse.
“Depois de moço, a gente frequentava baile do Elvira. Amanhecia no baile e depois, os amigos da gente, que moravam mais longe, iam dormir na casa de mamãe. Fora os amigos da gente, da família Giamellari, que se mudaram para São Paulo e, toda vez que vinham para Jacareí, ficavam na casa da mamãe.
Um dos amigos, o Armando, teve um problema no pulmão e precisou sair de São Paulo para se curar. O médico mandou ele ficar no interior, e ele veio ficar na casa de mamãe. A gente ia todo dia de manhã tomar leite no pé da vaca. Os 30 dias que ele ficou aqui mamãe chamava a gente às seis e meia, e a gente ia tomar leite lá no morro. Mamãe nunca reclamou deles virem aqui, ela sempre gostou da visita”, conta Nyzio.
Com todos esses cuidados, Joanna tornou-se naturalmente uma pessoa querida na cidade. Veja o relato da jornalista Eloísa Nascimento:
“Agora vou montar um time sem limite das vovós que eu mais curto em Jacareí, aquelas que são vó mesmo, com nobres cãs e tudo. (...) Meu time seria mais ou menos assim: (...) Joanna Cambusano (a que parteirou eu). Um time para não jogar futebol. Não vale mãe da gente, vó muito jovem. Tem que ser aquelas que combinam suavidade, beleza, nobres cãs, vó mesmo, entendem?” (Diário de Jacareí, ano XVI, nº 2946, 22 mar. 1985, p. 4 - Coluna ‘Agente Elô’).
Muito ativa, Joanna envelhecia com saúde e lucidez. Mesmo idosa, recebia os netos e bisnetos com muito carinho e sempre tinha uma moeda para oferecer, sob o pretexto de “dinheiro para o lanche da escola”. Nas comemorações dos 90 anos houve uma missa em sua homenagem.

“Dona Joanna Cambusano, essa figura das mais lindas e respeitadas de Jacareí, completou 90 anos dia 26 de setembro. Na Igreja do Bonsucesso, os filhos Du, Nina, Fredo, Nyzio, Roberto, Mir e Hélio (não está pela ordem de nascimento) mandaram rezar uma missa. Depois, uma homenagem de seus 25 netos e 12 bisnetos. A dona Joanna tem muito a ver comigo. Afinal, não fora ela e eu não teria nascido em mãos hábeis e generosas” (Diário de Jacareí, ano XIX, nº 3555, 10 out. 1987, p. 4).
Mas tanta vitalidade era uma forma dela esconder, de todos, as doenças das quais nunca se queixava e que, repentinamente, iriam acometer gravemente sua saúde. O pulmão estava fragilizado devido a uma isquemia, e as varizes dificultavam o deslocamento e a circulação sanguínea – embora não a impedissem de fazer as tarefas domésticas.
“Ela não gostava de ficar na casa dos filhos. Ela dizia que não queria ir para a casa de ninguém, ela queria ficar lá na casinha dela. No final da vida, ela ficou um mês na casa de cada um. Teve também a Dita Preta, que se prontificou a ficar um tempo com ela. Mas ela não parava, não conseguia ficar sentada: ela lavava louça; se tivesse roupa, ela lavava, passava café... Eu dizia para a Marli: ‘é melhor deixar, porque ela está acostumada e assim vive’”, narrou Mir.
Aqui a gente faz uma pausa para contar outra história.
Dita Preta é o apelido carinhoso da Benedicta Moreira dos Santos, vizinha da família que durante alguns anos morou com Joanna e se tornou sua companheira, amiga e, de certa forma, uma cuidadora, adjetivos que também foram recíprocos por parte de Joanna.
Em 2008, Dita foi convidada a falar sobre Joanna e escreveu uma carta de oito páginas, à mão, com muitas recordações da amiga, muitos corações em caneta vermelha e um poema dedicado à companheira de muitos anos. São tantos detalhes que achamos melhor deixar a carta na íntegra para leitura em outra página, mas, selecionamos alguns trechos para ilustrar essa amizade:
“Joanna era dez! Sua principal preocupação e satisfação era o ser humano, o próximo. Não parava para música, cinema etc., só para o futebol. Sempre que podia ia conosco no Campo do Elvira torcer para os filhos. Não havia sonhos na cabecinha dela. Sempre viveu o presente, nunca falava no futuro. Não reclamava de nada, só das coisas corriqueiras, porque realizava tudo o que queria.
No dia 22 de novembro de 1951 ela e a família se mudaram para a casa vizinha a minha, 137, e eu, 131. Nosso conhecimento começou aí.
Quase todas as noites ia vê-la. Havia o Bobi, cão com o qual eu brincava, correndo, em volta da mesa de jantar. Só não gostava mesmo quando, a noite, os rapazes chegavam com um montão de rãs. Eu morria de medo delas e eles corriam atrás de mim, com elas na mão. Eles as limpavam, e Nhá Joanna as preparava com todo carinho querendo que eu as comesse também.
Ela era católica, praticava em atos diários os mandamentos, ia aos domingos na missa das 7h. Tratava todos com igualdade. Dificilmente adoecia. Era muito trabalhadeira. Adorava sentir-se útil.
Às 6h já tinha varrido a casa, terminando de varrer a calçada ficava encostada na porta, apoiando as mãos no cabo da vassoura. Conversava com todos os passantes. Sabia de suas vidas, problemas, segredos, porque eram sempre os mesmos que se dirigiam para o trabalho. Convidava alguns para entrar e tomar café. A mesa estava sempre posta para servir a quem acolhesse.
Nas tardes de domingo era sempre festa! Dia de encontro da família toda e eu sempre nessa. Uma casa italiana! Mesa farta, risos, correria, gritos e choro dos netos. Conversa, fofoca, entre as mulheres, e futebol nos diálogos masculinos. Nhá Joanna feliz, sorrindo, entre idas e vindas, suprindo os pratos vazios. Bronqueava quando faltava alguém e sempre guardava petiscos para os retardatários.
Minha amiga não era de fazer e se intimidava com carinhos físicos. Talvez porque nunca os tenha recebido. Ela só visitava os vizinhos se fosse para ajudar em alguma coisa.
Em 1952, com 14 anos, ano seguinte à morte de mamãe e mudança de Joanna, fiquei gripada. Maravilhosa como sempre, ela se colocou no lugar de minha mãe. No dia 6 de janeiro de 1964 meu pai sofreu um derrame, e como sempre a amiga maravilhosa ficou ao meu lado. Às 4h do dia 2 de fevereiro meu pai faleceu, e quem estava ao meu lado? Como sempre, ela!
Em 1965, numa parceria com meu cunhado, abrimos no box 22 da Rodoviária, recém-inaugurada, nossa Autopeças Moreira – homenagem a papai. Precisava ficar a semana toda em Jacareí, viajando nos finais de semana. Nhá Joanna sempre precisava de alguém para lhe fazer companhia a noite. Seu João já havia morrido, e os filhos, todos casados. Comecei a dormir com ela. Fiz isso simplesmente por dez anos. Que prazer sentia, chegar da loja, tomar banho, jantar e me mandar para a casa da mãe Joanna! Mesmo depois de deitadas, continuávamos a conversar.
Foram várias as pessoas que tentaram fazer companhia para ela, porém, eram rejeitadas. Ela começou a adoecer. Os filhos, preocupados, começaram a fazer rodízio entre eles, mas não a deixavam fazer nada, só descansar. Isso ajudou a acelerar o final dela. Ela era dinâmica e passou a sentir-se inútil. Foi se definhando, definhando, até morrer.”
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Joanna morreu numa segunda-feira, dia 23, segurando a mão da filha Nina. Ela estava, até então, hospedada sob os cuidados do filho Hélio e da nora Bene. Nos últimos meses de vida, já com idade avançada, ela passou a ficar uma semana na casa de cada um dos filhos, que se revezaram para cuidar dela.
“A saúde dela começou a piorar com o problema na perna. Depois, deu o derrame. Ela ficou ruim, eu chamei o médico e mandei internar. Começou a subir o sangue e deu infarte, e eu sabia que ela não ia durar muito. Na primeira vez ela foi para a Santa Casa e voltou, na segunda não voltou, não”, lembra-se a nora Bene.
“Eu estava com ela aqui em casa, sentados no sofá, e ela boa. Eu saí um pouquinho e quando voltei, ela estava deitava, e já corremos... Chamamos o resgate, e o resgate levou ela. A gente ia na Santa Casa, chegava lá e pegava na mão dela, e ela ficava segurando. Ela ficava com uma roupa dessas de dormir, a gente abotoava o botão de cima, e ela desabotoava tudo, mas não falava mais. Foi derrame cerebral que deu nela”, relatou Hélio.
A jornalista do Diário de Jacareí estampou, na capa da edição de 26 de novembro daquele ano, a notícia da morte de Joanna:
“O falecimento de dona Joanna Cambusano
Faleceu na última segunda-feira, às 19h30, na Santa Casa de Misericórdia, a Sra. Joanna Boff Cambusano. Dona Joanna era viúva do fotógrafo João Baptista Cambusano e foi vítima de acidente vascular cerebral na última sexta-feira.
Matriarca de uma numerosa família bastante conhecida em Jacareí, dona Joanna completou 90 anos no dia 26 de setembro. Deixa os filhos Roberto, Adelina (Nina), João (Du), Hélio, Dyonízio, Waldemir e Walfredo, 26 netos e 13 bisnetos (Diário de Jacareí, ano XIX, nº 3586, 26 nov. 1987, capa).
O velório aconteceu na sala de sua casa, como era de costume naquela época e seu último desejo. O caixão ficou posicionado no centro do ambiente, com os candelabros e velas em volta. Foi um dia em que muita gente passou por ali: os familiares, os vizinhos, os clientes, os amigos, aqueles para quem ela fez remédios e aqueles que paravam para conversar ou tomar um café. A missa de 7º dia ocorreu no domingo, 29, às 18 horas, na Igreja Bonsucesso.
A morte de Joanna foi o prenúncio do fim do Estúdio Cambusano. A casa já não tinha vida, e os filhos demonstraram interesse em vender o imóvel e repartir a herança. Contudo, Hélio, Mir e Du ainda mantinham a empresa e dependiam do negócio para se sustentarem. A solução foi pagar, aos irmãos, a parcela correspondente ao imóvel e prosseguir com o Estúdio.
No entanto, com idades avançadas e sem condições de modernizar a empresa, os três irmãos não conseguiram prosperar no comando do Estúdio, sequer seus filhos demonstraram interesse na empreitada. Foi assim que, em 21 de agosto de 1993, o outrora famoso Estúdio Cambusano fechou as portas pela última vez, num ato que o historiador Benedicto Sérgio Lencioni chamou de “uma agressão à história e cultura” de Jacareí.
No poema escrito em homenagem à Joanna, Dita Preta, que também é falecida, declamou não só o relacionamento de duas pessoas, mas de duas almas que tiveram a felicidade de viver na mesma época e compartilhar o mesmo espaço na Terra, criando uma amizade que ultrapassou os limites da vida:
“Minha vida com Nhá Joanna
Fatos inesquecíveis da minha
Vivência com uma mulher
Maravilhosa que só acrescentou
Coisas boas na minha vida!
Sua imagem jamais sairá dos
Meus olhos e o seu amor do
Meu coração.
Ela era mais que demais!!!
A gente não morre
De morte morrida...
A gente só morre
De vida vivida
Do filho que cresce
Do esposo que parte
Do pranto que chora
Do riso que para
Do amigo que morre
A gente se esgarça, se rompe
E a vida se escoa
Assim, lentamente
Com luta, bem sei
Mas sem mágoas.”
Dita Preta, 2008

Agradecimentos: Maria Cristina, Cláudio, Roberto Filho e Dita Preta (in memorian)