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João Baptista Cambusano

João Batista Cambusano

Pode ser atribuído a João Baptista Cambusano o título de pioneiro na fundação de um estúdio fotográfico em Jacareí. Ao lado de seu sócio Amaral - cujo sobrenome nossas pesquisas não conseguiram alcançar -, ele fundou o “Foto Estática Cambusano” em 1926, prosseguiu com o negócio até sua morte, não sem antes passar aos filhos o conhecimento e a técnica que fizeram do Estúdio Cambusano sinônimo de qualidade e tradição na cidade.

 

A história do velho João começa do outro lado do oceano Atlântico. Os pais dele, Martino Cambusano e Domenica Albri, vieram da Itália no século XIX, numa época em que o Brasil e, notadamente o estado de São Paulo, incentivavam a imigração europeia para promover o desenvolvimento no interior do território, em especial no cultivo de café, uva, milho e feijão. Esse movimento era patrocinado pela Sociedade Promotora de Imigração, sociedade civil fundada em 1886 com o objetivo de promover o sistema de imigração por contrato, com reembolso de passagem ao imigrante.

O casal desembarcou do navio a vapor “Las Palmas” em Santos (SP), numa viagem que demorava entre 21 e 30 dias. A matrícula na Hospedaria de São Paulo foi feita em 3 de maio de 1893, na página 168 do livro 39, porém, não há indicação da origem do casal, apesar de ser certa a nacionalidade italiana.

Esperançosos pela possibilidade de trabalho e renda, os estrangeiros recebiam ofertas de trabalho e vinham para o país em busca de prosperidade.

Registro de entrada Martino e Domenica

O escritor Constantine Ianni descreve em “Homens sem paz: os conflitos e os bastidores da emigração italiana”:

 

 

“Os agentes das companhias de navegação, que somam dezenas de milhares, encontrando-se às vezes mais de um até nos menores povoados. Muitos estão estrategicamente situados nos escritórios municipais de colocação de mão de obra, nos quais as companhias e os bancos afixam grandes anúncios murais. O desempregado, cada vez que vai ao escritório municipal de colocação, simplesmente olhando as paredes, recebe uma sugestão para emigrar. A sua fantasia desenvolverá a ideia de ganho, de economia, de remessas mencionados no anúncio do banco. O agente da companhia de navegação está ali, pronto para dar todas as informações sobre qualquer país” (IANNI, Constantine. Homens sem paz: os conflitos e os bastidores da emigração italiana. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1963).

 

 

De acordo com o escritor, de 1869 a 1962, partiram da Itália para trabalhar no exterior cerca de 24 milhões de pessoas.

 

Entre eles, estava Martino, 39 anos, e Domenica, 36. A certidão de desembarque fornecida pelo Memorial do Imigrante de São Paulo não registra o destino do casal, mas é sabido que eles foram para a região de Sorocaba (SP), onde nasceria o filho João Baptista Cambusano em 17 de dezembro de 1895, dois anos após o desembarque no porto de Santos.

A vida simples consistia no plantio e colheita do café. Como muitos outros colonos, eles residiam na propriedade onde trabalhavam, e do salário que ganhavam era descontado o reembolso da viagem e a estadia. Consequentemente, sobrava muito pouco para o sustento, para a sonhada remessa de dinheiro para a família, que ficou distante, ou para a perspectiva de uma vida melhor.

As condições de existência eram precárias, e a imprensa comparava o processo da imigração ao tráfico de escravizados. A própria Sociedade Promotora foi colocada em xeque numa perspectiva histórica, devido à predominância de interesses dos fazendeiros:

 

“Após 1881, a província de São Paulo, dominada politicamente por fazendeiros, decide ajudar os proprietários pagando a metade da passagem. Era necessário que o setor público financiasse a introdução de imigrantes. Isso aconteceu, na província de São Paulo, com a Lei de 6 de março de 1884, que previa transporte gratuito para as famílias que se instalassem nas fazendas ou nos núcleos coloniais. O sistema, baseado em prêmios pagos aos agentes, foi reforçado com a criação, em 1886, da Sociedade Promotora de Imigração, expressão dos interesses agrários, a qual, nos três primeiros anos, promoveu a introdução de 17.856 famílias, num total de 101.396 pessoas”, conta Angelo Trento, em “Do outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana no Brasil” (São Paulo: Nobel: Instituto Italiano di Cultura di San Paolo: Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1988).

 

 

No interior do estado faltavam escolas para os filhos dos colonos, que cresciam analfabetos.

 

 

“É bem verdade que existiam proprietários esclarecidos que mandavam construir casas confortáveis, escolas com professores italianos e até salões de baile, mas isso era exceção. O panorama do mundo agrícola paulista era caracterizado pelo total isolamento de cada plantação, em que até a religião entrava a custo. Quase não havia igrejas ou capelas, o colono que quisesse ir à missa aos domingos tinha que enfrentar a distância de 15 a 30 quilômetros”, descreve Trento.

 

 

Com a falta de escolas, de assistência médica, de igrejas e de vida pública, não é de se espantar que doenças prosperassem e arrebatassem os mais vulneráveis. Surtos de malária e febre amarela caíram sobre a população de imigrantes e levaram Martino e Domenica.

Colonos em fazenda - Museu da Imigração SP

Assim, ainda criança João Baptista ficou órfão. Ele foi adotado por um padre e levado ao Colégio Coração de Joana, onde foi criado. Trabalhava como lavrador, mas a criação em um colégio católico propiciou a ele a formação de encadernador e a libertação de uma vida precária, como tiveram seus pais.

Em algum momento entre a morte de seus pais e o início dos estudos no colégio católico, João Baptista mudou-se para Itu, onde, aos 23 anos, conheceu e se casou com Joanna Boff em 23 de junho de 1919. O casamento ocorreu na Igreja Matriz sob a benção do vigário Elisiário Camargo Bastos.

Em 25 de abril de 1920 nasceu Roberto Cambusano, o único dos filhos natural de Itu, pois no ano seguinte a família mudou-se para Jacareí. No final de 1921, em 15 de novembro, nasceu Adelina (Nina), e os filhos se sucederam na seguinte ordem: João Filho, o Du, em 1929; Hélio em 1931; Dionysio, o Nysio, em 1933; e os gêmeos Walfredo (Fredo) e Waldemir (Mir) em 1936. Além deles, o casal teve dois filhos, Jandira e Arlindo, que morreram com pouco tempo de vida.

Em Jacareí, João Baptista trabalhou como mestre-de-encadernação no Colégio São Miguel, local que mais tarde passou a se chamar Escola Agrícola e, atualmente, a Escola Etec. Saindo de lá, fundou sua primeira empresa:

João B. Cambusano

Officina de encadernação, douração, e fabrica de quadros

Rua Dr. Lúcio Malta nº 49

JACAREHY

(Anúncio no jornal A Cidade, 11 dez. 1924, nº 7, ano I – p. 4).

 

Em 1926, João encontrou um sócio, Amaral, e ampliou o modelo de negócios: começou a tirar fotografia e mudou a razão social para “Foto Estática Cambusano”. João era autodidata e aprendeu a fotografar com amigos e à base de tentativa e acerto.

Ao longo dos anos, o negócio teve três mudanças de razão social: Foto Estática Cambusano, Foto Cambusano e Estúdio Fotográfico Cambusano, nome que permaneceu até seu fechamento em 1993. Da rua Dr. Lúcio Malta, o Estúdio passou para a rua Dr. Pompílio Mercadante nº 86 e finalmente, em 1954, para o prédio nº 137.

O Estúdio foi o primeiro constituído legalmente a ser montado na cidade.

 

“É preciso explicar porque colocaram o Foto Cambusano na condição de pioneiro: porque João Cambusano acreditou na prosperidade da terra, e por isso nele firmou suas raízes sólidas, a ponto de seu nome se ligar imediatamente à fotografia, quando mencionado. Outros fotógrafos se estabeleceram antes, como Maz Rasbergir, em meados de 1910, além de outros chamados em tempo de ‘retratistas’. Estes fotógrafos, todavia, itinerantes, porque a permanência na cidade perdurava enquanto houvesse cliente. Quanto à montagem de um estúdio permanente, a tradição assegura ao Cambusano o verdadeiro pioneirismo na arte fotográfica local. Sem prejuízo de especial menção aos profissionais que antes marcaram época, como Vicente Klimeika, na praça Conde Frontin, e Felício Guedes, na rua Rui Barbosa”, conta João Baptista Denis Netto, em “Pelas ruas da cidade: memórias de Jacareí” (Jacareí, SP: Edições Semanário, 1996).

 

 

Os jornais também registram a existência de outros fotógrafos em Jacareí: Arthur César Guimarães, em agosto de 1912, que promoveu uma exposição de retratos na “rua Direita” (Pompílio Mercadante); e Gustavo Adolpho Schmidt, entre o final do século XIX e o início do século XX.

 

Outros estúdios foram montados na cidade: Fotografia Velox, na década de 1940; Foto Palace, na década de 1970, situado na praça Conde Frontin; e Foto Sigma, cujos registros nos jornais apontam surgimento na década de 1980.

 

“Muitos fotógrafos itinerantes passaram pela cidade, sem dúvida. Mas a maioria das fotografias de Jacareí das décadas de 1920, 1930 e 1940 foram feitas pelo meu pai. Por isso, ele foi considerado o fotógrafo pioneiro da cidade. Inclusive, muitas dessas imagens foram usadas pela Fundação Cultural como cartões-postais de Jacareí. Se você observar, vai ver que o crédito das fotos são do Estúdio Cambusano”, contou Mir.

 

 

João com filhos

Um observador mais atento desses postais vai notar que sempre há um garoto acenando para o fotógrafo: era Roberto Cambusano, o filho primogênito, segurando um chapéu usado para proteger do sol a lente objetiva.

 

O relacionamento de João Batista era muito bom inclusive com os jornalistas de Jacareí. A pesquisa em jornais locais das décadas de 1920 a 2000 mostra referências à família em páginas sociais, esportivas e culturais. Um exemplo disso é a coluna social de “O Jacareiense”, que registrou o aniversário de João Cambusano na edição de 28 de dezembro de 1941.

 

De pai para filho

 

 

Para exercer o trabalho, João Baptista contava com ajuda da esposa e dos filhos. Joanna chegou a tirar do trabalho na Fábrica de Fogos Caramuru os filhos Du, Mir e Hélio, para que ajudassem o pai nos negócios. Ela usou o pretexto de uma explosão ocorrida na fábrica.

 

Em 1944 a família morava na rua Pompílio Mercadante nº 68, e Jacareí era uma cidade pequena, com 23.669 habitantes.Naquele ano, o filho Roberto foi convocado para integrar o 1º Escalão do 6º Regimento de Infantaria que partiria para a Itália, no contexto da Segunda Guerra Mundial. A notícia deixou a família apreensiva.

Durante os meses em que Roberto permaneceu em combate, João Baptista passava momentos reflexivos sobre a situação. Um dia, a notícia da morte de Roberto fez com que os demais filhos vissem, talvez, a cena mais rara de suas vidas: o pai chorando. No entanto, a notícia foi desmentida no dia seguinte, e em junho de 1945 o praça retornaria à casa dos pais.

A população se aglomerou na praça Conde de Frontin para ver os trens chegarem com os pracinhas, entre eles, Roberto Cambusano. Foi um dia de muita felicidade para os pais – mesmo que o velho João não manifestasse esse sentimento de forma tão acalorada.

 

“A única vez que eu lembro de vê-lo chorar foi quando chegou a notícia de que o Roberto tinha morrido na Guerra. Ele chorou. Eu era pequeno, e morávamos na casa número 68 da Pompílio Mercadante.  Era uma casa velha de chão de tijolo, que minha mãe lavava com água e sabão. Quando o Roberto chegou da guerra – a notícia não era verdadeira – a praça estava em festa. Quando os trens da Central do Brasil chegaram, o povo carregava os pracinhas nas costas. Eu estava brincando com uma roda de ferro, e o povo entrou em casa com o Roberto. Mamãe fez almoço, e Roberto distribuiu cigarros americanos para todo mundo. Ele trouxe também um relógio de bolso para papai e uma luvinha de criança, além da Malzer alemã”, contou Mir Cambusano, em entrevista.

 

 

No entanto, João não conseguiu transferir para o filho mais velho o conhecimento que tinha na área. Muito independente, Roberto quis trabalhar em São Paulo e contou com o apoio do pai para isso. Depois de sua participação no conflito mundial, Roberto foi nomeado para um cargo na então Escola Agrícola de Jacareí, se casou e formou sua família e seu círculo de amigos.

João Camusano

Embora a união da família permanecesse forte ao longo dos anos, os demais irmãos tiveram a vida muito mais ligada aos pais se comparados ao Roberto, especialmente aqueles que permaneceram trabalhando no Estúdio: Du, Helio e Mir.

Ainda moça, Nina trabalhava na Fábrica de Meias Visetti; Mir e Fredo saíram de casa para vender verduras nas ruas ainda crianças. Eles detestavam aquele trabalho, mas a mãe, Joanna, insistia que era para ajudar na renda da casa – as verduras eram cultivadas por ela. Quando não era isso, eles iam até o Mercado Municipal ganhar uns trocados ajudando as senhoras a carregarem as compras.

Quando os gêmeos chegavam em casa, perturbavam o pai pedindo dinheiro. O velho dizia: “Eu não tenho”, mas, metia a mão no bolso e arrancava uma moeda para cada uma das crianças.

Nysio se recorda dos dias em que o pai viajava com os filhos para São Paulo, onde comprava matéria-prima e equipamentos na rua Líbero Badaró.

 

“O meu pai comprava em São Paulo. Eu era moleque e lembro que ia com ele, de bonde, na época. Comprava de pouco, porque não tinha condições de comprar muita coisa. Acho que todo mês ele ia fazer compras, ele comprava umas caixas de papel, filme... Sabe como a gente ia naquele tempo? Pela estrada velha, via Mogi das Cruzes. A gente pegava ônibus do lado da Igreja do Bonsucesso, um ônibus que vinha de São José. A estrada velha passava em Mogi, Suzano e chegava na estação do Brás. Na cidade não tinha outras estações. Depois de muito tempo abriu uma rodoviária na cidade, onde só parava Pássaro Marron. Em casa, todos nós aprendemos a revelar fotografia, até mesmo minha mãe e a Nina, que eram mulheres”, conta Nysio.

 

 

Mas João não se limitava a transmitir seus conhecimentos aos filhos. Amigos, conhecidos, quem o procurasse em busca de aprendizado era recebido e aprendia as técnicas e conhecimentos fotográficos do mestre.

 

 

“Tinha um compadre do meu pai que chamava Felício Guedes. Ele trabalhava na fábrica Visetti, mas ganhava pouco ali. De dia, ele ficava especulando o trabalho de meu pai e começou a perguntar como fazia fotografia, acompanhava meu pai no quartinho escuro, que tinha só uma luz vermelha. Meu pai ensinava, achando que ele queria aprender por aprender. O Felício aprendeu tudo mais ou menos, saiu da fábrica e começou a fazer fotografia na casa dele. Fazia três por quatro e cobrava metade que meu pai cobrava. Mas meu pai nunca ligou. Ele até ia pedir material emprestado, meu pai vendia fiado para ele, material que ele nem tinha dinheiro para comprar. Depois, as pessoas que tiravam foto com ele voltavam para o Estúdio e pediam para o meu pai fazer outra foto, porque aquela tinha ficado muito ruim”, lembra-se Nysio.

 

 

A explicação para essa gentileza de João Baptista pode estar nos números: em média, 230 pessoas eram retratadas por dia no Estúdio Cambusano. Pesquisadores da história de Jacareí contam que, entre as décadas de 1950 e 1990, dificilmente encontrava-se alguém na cidade que não tenha sido fotografado no Estúdio Cambusano.

 

Além das fotografias no Estúdio, eram feitas as “reportagens”, como eram chamadas as fotografias de casamento. Além da cerimônia na igreja, esse tipo de reportagem incluía uma produção no Estúdio, onde um cenário fora construído para essa finalidade.

Além do cuidado com a cenografia, que foi criada no Estúdio para ambientar as fotos do casal, havia o cuidado no retoque das imagens, técnica manual que João Baptista ensinou aos filhos, mas que foi desenvolvida com maestria por Mir, o artista inato. A técnica consistia em pintar, com lápis de ponta bem fininha, as partes claras do negativo. O detalhe fazia muita diferença no resultado, apresentando fotos com aspecto profissional.

Processo de retoque da foto

Um costume talvez considerado estranho nos dias de hoje foi a fotografia de defuntos. Em uma época na qual as câmeras fotográficas não eram tão comuns quanto hoje, o cortejo fúnebre parava no Estúdio para que a família tivesse a última ou talvez a única recordação do falecido.

Artistas de cinema, do circo e da música passaram pelo Estúdio, uma parada obrigatória antes da apresentação que, muitas vezes, acontecia no palco do Cine Rio Branco.

João Baptista comandava esse trabalho com apoio dos filhos e esposa. Homem reservado e de poucas palavras, era sistemático e gostava da rotina diária: acordar cedo, tomar café preparado pela dona Joanna, abrir as portas do Estúdio às 7h, trabalhar até o horário do almoço. Neste momento, cada um tinha sua cadeira, e nos dias em que era servido frango, cada um se servia de uma parte preferida.

 

“Ele era um homem muito bom. Ele nunca falou palavrão, não admitia que a gente falasse palavrão. Naquele tempo a família era grande, mas ele conseguia que todos almoçassem juntos, na mesma hora. Isso foi bonito. Ele criou assim, por isso os irmãos são unidos. O pai nunca levantou a voz, ele conseguia isso na calma, na educação. Mesmo sendo humildes, criaram seis homens assim”, conta Odette Arice, esposa de Nyzio.

 

 

O período da tarde era de muito trabalho, até que o fim do dia chegasse, às 18h. Dali, João ia para o bar e bebia rabo de galo – mistura de pinga com Cinzano. João costumava fumar, ele tragava cigarros da marca Fulgor, um cigarro grosso, que com o tempo prejudicaria seus pulmões.

 

Apesar de não ser desportista, batia uma bolinha nas disputas entre o bar do Brito contra o bar do Tonico, na posição de ponta direita.

Anualmente, ia com os filhos fazer reportagem da Festa da Carpição. Esse evento ocorria na região do atual bairro Parque Califórnia, numa época em que tudo era roça. Com os equipamentos nas costas – a pesada máquina de fole, suas lentes, o tripé, as chapas – ia com os filhos, às vezes de charrete, fotografar a festa.

Na obra “O que se conta daqui”, as autoras e professoras Érica Turci e Tatiana Baruel contam que os fiéis comemoravam a Festa da Carpição em diversas igrejas, e era um dia de reza e festa; portanto, o povo da roça não trabalhava.

“As romarias vinham de todos os cantos, em charretes e carros de boi enfeitados com flores e fitinhas coloridas. O povo chegava com roupa de missa e descalço. Ninguém dava importância para sapato na roça, e quem tinha guardava para ir à cidade. Já um terninho, todos os homens tinham. Cada família levava o que queria, frango, paçoca, biscoito, e todo mundo comia à vontade. A carpição era pra pagar promessa. As pessoas cavoucavam um punhadinho num pano e levavam para outro canto, faziam isso três vezes.  Quando a pessoa estava doente, amarrava um lencinho com a terra e colocava em cima do lugar dolorido” (TURCI, Érica. O que se conta daqui. Érica Turci e Tatiana Baruel. Jacareí/SP: Editora do Autor, 2006).

 

 

Os filhos guardaram lembranças dessa época:

 

 

“Tinha uma festa no Pedregulho em que o pai ia tirar fotografia e levava a gente. Às vezes, a mãe também ia. Naquela época o flash usava pólvora branca, e tinha um cabo que segurava aqui e tinha o gatilho aqui em cima, que ficava ligado na máquina. Quando ele batia a foto fazia ‘tum!’, aquela fumacera! Pode perguntar se você conhecer um fotógrafo antigo. No Pedregulho a gente levava aquele buta maquinão... Enfiava a cabeça dentro para  focalizar, depois ia na frente para fechar a objetiva.... Dava uma mão de obra desgramada, hoje é tudo automático”, conta Hélio.

Momento de distração com filhos

Após o trabalho de registrar a foto, vinha a tarefa de revelar a chapa ou o negativo e ampliar a imagem. Trancado num quartinho escuro, no fundo do Estúdio, com apenas uma fraca luz vermelha ligada, a mágica acontecia: o filme preto e branco era transferido da bobina para uma espiral, e esta era inserida num pequeno tanque com uma tampa. Ali, o filme era banhado em uma mistura química chamada revelador, e esse tanque tinha que ser chacoalhado, de forma a atingir todo o filme, sem deixar falhas.

 

Em seguida, para interromper o processo iniciado pelo revelador, é utilizado um ácido, o fixador, e por último é feita a lavagem, para garantir a eliminação dos resíduos químicos. Todas essas misturas químicas eram preparadas manualmente pelo fotógrafo e seus filhos.

Ao término deste processo, o filme estava pronto para ir para o ampliador, uma grande máquina onde o negativo era projetado e sensibilizava o papel fotográfico. Neste ponto, a dificuldade era acertar o foco entre o negativo e o papel.

Em seguida, o papel passava por um processo semelhante ao do negativo: era banhado em diferentes bacias para que ocorresse a revelação - quando a imagem começa a aparecer para o fotógrafo -, interrupção, fixação e lavagem, etapas que garantiriam a formação da imagem final. Após isso, o papel era pendurado em um varal, até que estivesse completamente seco.

João Batista fez isso até quando pôde. Foram 63 anos de vida, mas os dois últimos foram sofridos, com um tumor maligno avançando diariamente no pulmão, afetando a respiração e inspirando cuidados integrais da família.

 

“Papai fez um exame de pulmão, e o médico disse: ‘o senhor tá só com uma manchinha no pulmão, toma esse remedinho, isso não é nada não’. Virou câncer, estava crescendo ali, e o médico falou que não era nada. Ele poderia ter vivido mais. Quem mais ficava com ele era eu e a Bene, ficávamos noites sem dormir... Às vezes chamávamos um irmão, um parente para ficar lá, para eu dormir, ficava lá e dizia: ‘eu vou dormir um pouco’, e ia deitar. ‘Hélio, vem tomar conta do pai’, me chamavam, e eu passava a noite em claro”, contou Hélio, em entrevista feita em fevereiro de 2006.

 

 

Carteira de saúde de João Cambusano

Com os irmãos Du e Mir, Hélio continuou tocando o Estúdio após a morte do pai. Entre os três, Hélio foi o primeiro a se aposentar, até que, em 1993, os outros dois resolveram fechar o Estúdio, que já enfrentava concorrência das empresas que entregavam revelação colorida em uma hora – investimento que eles teriam que fazer e que iria gerar um esforço enorme para obter resultado, uma disposição que eles não teriam mais.

 

O historiador Benedicto Sérgio Lencioni, prefeito de Jacareí entre 1977 e 1983, relatou que “o fechamento do Estúdio Cambusano foi uma agressão à história e à cultura”. No lugar da casa de nº 137, onde funcionava o Estúdio e no qual morou a família Cambusano, foi construído um ponto comercial.

 

“Foram 67 anos de trabalho e documentação diária de rostos, famílias, festas e acontecimentos os mais variados que marcaram a vida individual e coletiva de uma cidade. O fechamento do Estúdio é desses males sem conserto, uma agressão à história e cultura. Ao acabar o Estúdio, acabou-se também uma parte significativa de nossa história registrada em retratos”, narra Lencioni.

 

 

O velho João viveu o suficiente para participar do casamento dos filhos, com exceção dos gêmeos Fredo e Mir, e para conhecer alguns de seus netos, tais como Roseny, Zezinho, Beto e Helinho.

“O final da vida dele foi só sofrimento, porque ele estava com câncer de pulmão. A gente tinha que correr de madrugada para receitar remédio e tomar morfina. Um amigo de família, o seu Álvaro, não media esforço para ajudar papai, era ele quem buscava tubo de oxigênio e ajudava todo mundo em casa”, lembra-se Mir.

 

 

João morreu numa segunda-feira, 29 de dezembro de 1958.

 

 

“No enterro do papai, estava quase a população inteira de Jacareí. Ele era tão estimado na cidade e tinha feito muitas amizades. O velório aconteceu no Estúdio, e o corpo foi enterrado no Cemitério do Avareí.”

 

 

A história se encarregou de guardar a memória de muitos empreendedores, e a história da fotografia em Jacareí tem em João Batista Cambusano um desses exemplos. Um homem que buscou o conhecimento e a técnica, os transmitiu aos filhos e amigos e fundou uma empresa que pertenceu à cidade e a sua gente por quase sete décadas.

 

Em retribuição, a cidade batizou uma rua com o seu nome.

 

“Nos altos do bairro Cecap, também conhecido como São Benedito, encontra-se a rua João Baptista Cambusano. Presta uma homenagem a um fotógrafo pioneiro de Jacareí, cujo trabalho criou um acervo sem precedentes na cidade. Essa via pública pavimentada interliga a avenida Paulo Setúbal (...) à rua Alfredo Barbieri (...)”, descreve o jornalista João Batista Denis Netto, o Jobanito.

 

 

Também é do jornalista o último parágrafo deste texto:

 

 

“Cambusano não era somente um artista de fotografia. Além de letrista era exímio encadernador, formado em Mestria de Artesanato no Colégio Coração de Jesus, na capital. Por isso, muita gente possui jornais e livros que foram encadernados pelo Cambusano. A par de que os seus flagrantes fotográficos jacareienses – que Luiz José Navarro da Cruz conserva com muito carinho – representam um acervo histórico de valor inestimável para os estudiosos desta terra de Antônio Afonso. Justa, portanto, a homenagem ao velho Cambusano.”

João e Joanna
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